terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Uma Conversa com o "Diabo"

Certa vez, em meio às minhas experiências relacionadas à goécia, eu tive um sonho onde surgiu um homem diante de mim. Ele tinha estatura mediana, cabelos curtos e negros e pele clara. As roupas eram um tanto formais, tratando-se apenas de um terno simples. A expressão facial nada dizia do que se passava em seu interior. Não havia pista alguma do que se seguiria no sonho. Apresentou-se:

- Olá, eu sou o Diabo.
- O Diabo?
- Sim.

Talvez muitas pessoas considerem esta identificação estranha, afinal costuma-se relacionar a goécia a demônios internos, e não a um ser identificando-se como o “Diabo” (afinal nem mesmo é propriamente um nome). No entanto, quando se reflete que as imagens que brotam na experiência com o inconsciente são fortemente condicionadas pelas impressões pessoais daquele que tem o sonho, não se deve estranhar que a simbologia fuja à uma norma padrão.

Prossegui com o diálogo:
- E porque razão você veio aqui conversar comigo?
- Apenas quero fazer um convite a você. Gostaria de conhecer o paraíso?
- E você, sendo quem é, pode visitar o paraíso?
- Posso, sempre que quero. Quer ver como é?

Irrefletidamente, respondi:
-Quero.
E estávamos então em um jardim. Ele continuou a falar:
- Este é o paraíso. O Jardim do Éden.

Eu observei o local. Era preponderantemente natural. O máximo que pude encontrar ali (no que diz respeito a construções "artificiais") eram bancos, onde algumas pessoas se sentavam. Quase não conversavam entre si. Não havia estímulo, nem propósito de realizar coisa alguma. Não havia atividade intensa, nem conversas inflamadas. Eu tive uma impressão de calma e previsibilidade. Senti-me desconfortável por causa da ausência de ação naquele ambiente.

Ele continuou a falar:
- Eu também não me sinto bem. Vamos sair daqui?
Fiz uma pequena pausa e consenti:
- Vamos.

De repente, estávamos diante de um elevador e entramos nele (assim são os símbolos nos sonhos, às vezes muito triviais). A porta se fechou e o elevador subiu. O movimento do elevador me surpreendeu pois eu esperava que o paraíso que eu havia visitado estivesse acima de tudo e, portanto, o elevador deveria descer ao invés de subir. Meu estranho interlocutor olhou para mim seriamente, sem dizer palavra alguma.

***

No mito bíblico do Jardim do Éden não era pressuposto que o ser humano possuísse a capacidade de diferenciar entre o Bem e o Mal (ou julgar a si mesmo e o que existe ao seu redor). O papel de Adão era cuidar do jardim, enquanto o papel de Eva era ser sua companheira. Idealmente todas as transformações ocorriam de acordo com a forma que haviam sido planejadas e, enquanto a humanidade (no mito, reduzida a Adão e Eva) não fosse capaz de efetuar distinções de valores (definindo o Bem e o Mal), permaneceria integrada àquela existência em harmonia e, portanto, sem que pudesse causar danos. Uma condição de inocência, por assim dizer.

No entanto, a distinção entre os seres já existia e a serpente estava ciente disso (ou seja, o paraíso já não era mais harmonioso). Homem e mulher haviam sido proibidos por Deus (ou melhor dizendo, aquele que era considerado Deus na bíblia), o que já indicava que havia uma separação fundamental entre Deus e o ser humano (o qual lhe devia ser obediente). Em suma, as divergências já existiam: apenas não eram percebidas pelo ser humano.

A desobediência foi um ato espontâneo, pois Adão e Eva não poderiam qualificar aquela ação fosse como boa, ou fosse como ruim. Já a expulsão se deu não por causa do castigo do pecado cometido (um pecado inconsciente, por sinal, afinal não se compreendia sua malignidade), e sim devido às possibilidades que o ser humano poderia assumir caso não fosse contido (caso não fosse limitado), uma vez que já possuía a capacidade de discernimento e, portanto, tinha em si os primórdios da própria consciência.

O fruto do discernimento entre o Bem e o Mal tem o mesmo significado que o fogo roubado por Prometeu na mitologia grega. Neste mito, Prometeu havia roubado o fogo de Zeus e o dado aos mortais. Dessa forma, a humanidade havia adquirido o poder do fogo, deixando sua condição de fragilidade. Prometeu foi amarrado a uma rocha como punição. Todos os dias uma águia devorava seu fígado, e o fígado se regenerava somente para ser devorado de novo no dia seguinte. Tal punição prosseguiu até o dia em que Hércules o libertou.

A semelhança entre Prometeu e Lúcifer (simbolizado pela serpente) é clara, bem como o estígma que obteve por ter profanado o fruto da árvore do Discernimento entre o Bem e o Mal (tal como Prometeu foi acusado, quando profanou o fogo de Zeus).

Por enquanto, vale refletir sobre os mitos e conteúdos expostos aqui. Em breve irei acrescentar novos posts, adicionando mais alguns comentários e, é claro, também irei prosseguir com a narração do sonho (há uma quantidade relativamente diversificada de conteúdo que quero expor sobre o mesmo e, por isso, optei por fazê-lo gradualmente).
Para aqueles que desejarem conferir os trechos mencionados na bíblia, verifiquem Gênesis 3, 1-22. Apenas sugiro utilizarem de uma boa tradução (pessoalmente prefiro a Bíblia de Jerusalém, mas fica a critério de cada um).