quinta-feira, 10 de abril de 2014

Olhando para Dentro de Si

Certa vez eu sonhei que estava em uma espécie de universidade. Ali cada um dos alunos (inclusive eu) tinha um apartamento para si e existiam imensos corredores mal iluminados, com a atmosfera característica dos prédios antigos. Já os apartamentos, estes tinham boa iluminação interna, transmitindo uma impressão mais jovial.

Os alunos se cumprimentavam dentro desses corredores quando estavam saindo ou chegando. Nesses momentos, breves conversas aconteciam. Por acaso eu e um colega estávamos chegando ao mesmo tempo e, enquanto tirávamos as chaves do bolso, eu o cumprimentei:
- Olá! Tudo bem?
- Olá, tudo - ele respondeu.

Prosseguiu:
- Você é novo por aqui?
- Sim, cheguei há pouco tempo.
- Pois então, há algumas vantagens de ficar por aqui. É muito confortável e você é bem assistido. Praticamente não há porquê se preocupar a respeito de suas necessidades básicas.
- Isso é realmente muito bom - assenti.
- O único detalhe é que você precisa estudar, e isso pode ser um tanto difícil para alguns alunos.
- Mesmo? Porque?
- Digamos que nem todos tem sangue frio para os conteúdos ensinados aqui. São um tanto demoníacos.

Fiquei em silêncio por alguns segundos e indaguei:
- Demoníacos?
- Sim, demoníacos. Mas agora preciso entrar. Depois conversamos mais.

Entrei em meu apartamento e encostei a porta. Aquela revelação me assustou. Sobre este trecho do sonho, me parece um tanto estranho. O fato é que, para alguém como eu, já acostumado às experiências relacionadas à goécia (a arte do contato com demônios internos), uma revelação deste tipo não deveria me perturbar tanto mas, enfim, era um sonho e os sonhos muitas vezes seguem por uma lógica própria, a qual nem sempre correponde ao que pensamos durante os momentos de vigília.

Retornando à narração do sonho, decidi então abandonar aquele lugar e fiquei algum tempo fora do campus (eu não tenho uma percepção exata de quanto tempo se passou). No entanto, mudei de opinião e resolvi voltar. Ao retornar, encontrei um dos professores da faculdade (ao menos me parecia assim). Cumprimentou-me e começou a conversar comigo. Em certo momento indagou:
- Posso lhe fazer uma pegunta, mesmo arriscando-me a ser indiscreto?
- Sim, é claro que pode - respondi.
- Percebi que você se ausentou por um tempo. Estava pensando em nos deixar, não estava?
- Estava - confessei.

Houve uma breve pausa, como se ele estivesse ponderando sobre o que me dizer. Prosseguiu:
- Muitos têm esse impulso, mas é preciso dizer-lhe que nenhum de nós deseja mantê-lo aqui à força. Você pode nos deixar ou pode resolver ficar, mas irá se beneficiar se passar alguns anos aqui conosco.
- Como assim? Explique.
- Você gostaria de ter um significado para as pessoas?
- Um significado?
- Sim. Você quer que seu nome represente algo para as pessoas? Quer que possam procurá-lo e encontrá-lo se de fato o desejarem?
- Quero - eu disse.
- Então fique conosco - concluiu.

***

O período em que tive este sonho (e outros) foi caracterizado por muitos contatos “demoníacos” (para mais detalhes confira o post Porque Escolhi o Caminho da Mão Esquerda). Estas experiências ocorreram dentro de um processo de imersão na goécia e estou relatando-as neste blog. O que talvez não esteja muito claro nestas narrações é o motivo destes contatos terem acontecido.

Para fornecer esta explicação, é necessário considerar que estou tratando aqui sobre como segui meu próprio caminho na magia, lembrando que a arte de um mago é, principalmente, um meio para alcançar a realização própria. Existe uma crença errada que se baseia no princípio de que é preciso fazer uma escolha entre servir a si mesmo ou servir aos seus semelhantes. Por esse princípio, aqueles que decidem servir a si próprios normalmente são rotulados como egoístas. Já os que decidem servir aos demais, sem pensarem em si mesmos, são considerados altruístas.

No entanto, será que esta escolha é realmente necessária? Será que é benéfica? Imaginem se todos negassem a si mesmos em prol de uma coletividade. Seriam felizes? Certamente que não. Da mesma forma, não haveria bem algum à humanidade se cada um de nós buscasse a realização individual sem considerar os demais. Pode-se deduzir que o verdadeiro desafio não é escolher focalizar seja o indivíduo, seja o coletivo. O objetivo mais importante é satifazer ambas condições, simultaneamente.

Difícil fazer isso? Nem tanto. Quando comparando o indivíduo versus o coletivo, o que exatamente consideramos ser este coletivo? A pluralidade é homogênea (todas as pessoas são iguais) ou é heterogênea (cada pessoa tem um objetivo diferente)? É óbvio que a coletividade é heterogênea. Portanto há quem tenha ressonância conosco e também há quem tenha dissonância. Só precisamos saber reconhecer qualitativamente o que nos cerca, isolando-nos de situações em que percebemos conflitos, e buscando unir-nos àqueles que nos completam. Dessa forma as necessidades individuais e coletivas se harmonizam.

No entanto, antes de buscarmos o que nos completa, precisamos saber o que somos. É basicamente disto que trata este sonho. É a necessidade imperativa de definir a si mesmo primeiro (assumindo um compromisso nesse sentido), antes de encontrar ressonâncias externas. Enquanto não nos definimos, somos parte do problema pois nenhuma solução que se apresente a nós nos satisfaz. Nessa condição, somos uma incógnita e não criamos sinergias. Colocamo-nos literalmente em cima do muro, tornando-nos sem expressão, sem significado e, por isso mesmo, desinteressantes.

As pessoas normalmente procuram as respostas para suas vidas, só que o fazem olhando para fora de si mesmas, quando deveriam olhar para dentro de si. É dentro de cada um que está a chave para a auto-realização. Essa é uma verdade tão insuspeita quem nem sequer é necessário ocultá-la dos incautos. Você pode espalhá-la pelos quatro cantos do mundo, mas as pessoas em geral não a ouvem. Teimam em acreditar que aquilo que são, de fato, não importa para atingirem o sucesso pois julgam-se ser “meras gotas de água dentro de um imenso oceano” e, por isso mesmo, tentam se conformar. Importa para essas pessoas conseguir uma promoção, ir bem nas provas, seguirem uma religião que lhes apresenta um modelo do que devem ser (ignorando por completo o que realmente são). Enfim, focalizam no que lhes é externo. Não lhes passa pela cabeça que a realidade externa pode se tornar a consequência de uma estruturação que começa internamente, expandindo-se depois.

Não parece um tanto absurdo tentar controlar tantas condições alheias a nós mesmos? Nunca sabemos exatamente o que outra pessoa pensa e sempre cometemos erros de julgamento. Não somos infalíveis na nossa forma de avaliar o mundo. Por outro lado sabemos quem somos. Porque não partir desse princípio?

É disso que trataram estas experiências que surgiram espontaneamente na minha vida: definir-me. Enquanto eu definia a mim mesmo, é claro que minha relação com o inconsciente ia se estruturando. Não era ainda um momento para ser eficaz na realização de ritos mágicos mas eu estava criando minhas relações com o invisível. Essas relações iriam influenciar o mundo visível no devido tempo. Mas isso eu vou contar mais para frente.