Prazer
e dor. Polos opostos cujas gradações populam não apenas a experiência
humana, mas também a experiência da vida em si, de todo tipo de vida. A
dor nos leva a repelir algo, nos mostrando o que é dissonante de nós, e o
prazer nos impulsiona para que nos aproximemos de alguma coisa,
revelando o que nos é ressonante.
E,
talvez estranhamente, estas sensações não acontecem necessariamente
porque algo realmente nos cause prazer ou dor. Na verdade a consciência
destes estados não se sente somente com um estímulo imediato, e sim,
muitas vezes, como a memória de algo que se sentiu, a lembrança de uma
experiência, gerando a expectativa de ter novo prazer, ou de sofrer dor,
tal como diz aquele ditado popular: “Gato escaldado tem medo de água
fria”. Assim estas sensações não são apenas reações momentâneas, e sim
algo que passa a fazer parte de cada um, constituindo a base do nosso
aprendizado e dando forma a quem nós somos. Pode-se dizer que as
ressonâncias (o prazer) representam respostas que nos completam,
expandindo nossa expressão para o exterior, e que as dissonâncias (dor)
mostram nossos limites, os quais não nos permitem passar adiante, o
ponto a partir do qual cessa o “eu” e começa algo diferente do “eu”.
A
princípio, o prazer e a dor parecem opostos, contraditórios em suas
naturezas porém, em uma análise mais profunda, percebe-se que estão
interligados, sendo complementares entre si. O prazer (que aponta para a
expressão de quem somos, a qual diz respeito ao nosso aspecto interior)
é complementado pela natureza do que existe ao nosso redor, a qual
corresponde à visão do que difere do “eu” (sendo este o aspecto exterior
a nós que é revelado pela dor). O interior é complementado pelo
exterior. Dessa forma, o desenvolvimento da consciência só é completo na
vivência de ambas as percepções. O interior, percebemos por nossos
próprios impulsos. O exterior, percebemos pela negação destes impulsos.
No
sistema nervoso, os neurônios acrescentam novas considerações à questão
da percepção. O neurônio sempre reage a uma certa intensidade mínima de
estímulos de forma que, abaixo desse limiar, novas sinapses não
ocorrem. No entanto, quando um mesmo estímulo é intenso o bastante mas
repetido com frequencia, ele passa a ser ignorado. O motivo disso é o
que se chama de imagem consecutiva negativa que é mantida por um tempo,
de forma residual, em cada neurônio e que, sendo a imagem negativa do
estimulo, ela o cancela. Para se compreender o que é a imagem
consecutiva negativa, basta observar alguma cena com cores iluminadas e
brilhantes por alguns segundos, e fechar os olhos. Então se verá uma
imagem em negativo, a qual é a imagem consecutiva negativa do que se
viu.
Há
muitas outras experiências físicas nesse sentido como, por exemplo, a
percepção do frio ou do calor que tende a se amenizar com o passar do
tempo, o eco dos sons que nos incomoda a princípio mas que o ignoramos
depois de um certo período, um ruído insistente que passa despercebido
quando nos habituamos a ele, e, é claro, isso também se aplica às
sensações de prazer e dor e, até mesmo, às experiências subjetivas da
rotina do dia-a-dia, as quais não são necessariamente físicas. Na
verdade, é este mecanismo que permite que nos acostumemos às mais
diversas situações ao nosso redor porém, ao mesmo tempo, nos torna cada
vez mais incapazes de perceber o que nos cerca, a menos que os estímulos
se tornem mais intensos, ou que sejam intercalados pela ausência de
estímulos. Essa é a base da dinâmica do vício: a busca de um estímulo
cada vez maior para produzir o mesmo efeito de prazer. É a escravidão de
si mesmo à paixão, não no sentido romântico, mas no sentido de
tornar-se dependente das próprias sensações.
O
vício se origina com uma experiência prazerosa que gera a expectativa
da repetição dessa experiência. Seguem então tentativas de reproduzi-la,
porém cada nova tentativa tende a proporcionar menos prazer do que as
anteriores, justamente pelo fato da pessoa acostumar-se a elas. Como
compensação, procura-se experiências cada vez mais fortes para se manter
a mesma intensidade de satisfação. Em certo estágio, realiza-se
freneticamente diversas tentativas, as quais não produzem qualquer tipo
de satisfação real. Quando se percebe a falta de sentido do vício,
tenta-se negá-lo e conte-lo, mas aspectos subconscientes foram
estimulados por muito tempo até então, adquirindo uma espécie de
aprendizado inercial sobre como gerar o prazer através do vício. A
abstinência gera insatisfação e a mente começa a sugerir os passos que
aprendeu para obter o prazer. Por um tempo, existe uma resistência
consciente a estes estímulos porém, gradualmente, começa-se a ceder a
atitudes aparentemente sem consequências, porém sedutoras. Estas
atitudes provocam ainda mais a imaginação, diminuindo o poder sobre os
próprios pensamentos e, por consequência, reduzindo também o
auto-controle. E assim, após um período de abstinência que pode ser até
mesmo razoavelmente longo, há a recaída, e após a recaída, toda a
auto-estima adquirida neste período se esvai, até que se tente novamente
vencer o vício. Este processo se aplica a todo tipo de vício, seja o
vício de comer exageradamente, usar drogas, fazer sexo, fazer compras,
ou qualquer outro.
Na
sociedade, o vício provoca deteriorações das mais diversas formas, seja
na saúde, nos aspectos financeiros, ou nos relacionamentos pessoais,
familiares, sociais e profissionais. Para contrabalançar estas
consequências, existem regras para moderar as possibilidades individuais
de obtenção do prazer. São as convenções religiosas, morais e legais
que têm a função de fixar limites, criar contextos estáveis, e assim
estabelecer ciclos que intercalam a satisfação por um lado e o
cumprimento de uma função social por outro. O problema está no fato de
que estas convenções não conseguem abranger as necessidades pessoais de
uma forma plena e homogênea para todos os indivíduos, gerando uma
crescente insatisfação na sociedade e provocando conflitos com relação
às convenções pré-estabelecidas, nas esferas pessoal, familiar, social e
profissional. De fato, é frequente que estes atritos e desequilíbrios
sejam transportados para dentro das pessoas, tornando-as indivíduos de
“duas faces”, sendo uma destas faces a demonstração de perfeição
religiosa e moral, e a outra, de uma natureza oculta, intencionalmente
escondida. E também existem as pessoas consideradas virtuosas, embora
sejam difíceis de se diferenciar daquelas que são hipócritas, ou seja,
das que aparentam ser algo que não são (a não ser pelas contradições
inerentes da hipocrisia). Ainda assim, mesmo para o verdadeiramente
virtuoso, ainda pesa a insatisfação.
A
forma como o prazer e a dor se manifestam (e as condições que se
repetem nesse processo) abrange muitos contextos, seja o próprio
indivíduo (introspectivamente), ou no ambiente familiar, ou na sociedade
de uma maneira mais ampla. Compreender estes aspectos em si mesmo é o
primeiro passo para se adquirir o auto-controle e também o controle
sobre as possibilidades de transformação da realidade ao redor de si. É
necessário que se seja capaz de se ver tal como um observador externo,
percebendo a dinâmica de pensamentos, sensações e emoções interna, bem
como as interações externas, e então procurar conscientemente interferir
nesta dinâmica. Com este tipo de intervenção, através de pensamentos,
atitudes e ações, é possível assumir o controle de si próprio para então
ser capaz de interagir e orientar melhor o mundo ao redor de si, na
direção de uma realização cada vez mais plena. Os resultados são, com
frequência, quase desanimadores à princípio e, em meio a um processo de
tentativa-e-erro, não há garantia de que nunca surjam motivos para
arrependimento mas, para cada ilusão e erro sempre há um aprendizado
quando os percebemos e, assim, nos tornamos melhores pelo simples fato
de tentarmos sê-lo.
O
que se busca é permitir que a satisfação ocorra de forma equilibrada. O
filósofo grego Epicuro (341 - 271/270 a.C) criou um método
relativamente simples de ser aplicado na busca da realização plena do
prazer com equilíbrio, cujo sentido original se deturpou já nos seus
primórdios, por seus próprios seguidores: o hedonismo. O hedonismo, na
concepção de Epicuro, partia do princípio de que o ser humano tem três
dimensões: física, mental e espiritual. A dimensão física diz respeito à
satisfação ou insatisfação física; a dimensão mental diz respeito às
satisfações ou insatisfações apontadas pelo uso da razão, a qual envolve
o intelecto e também a capacidade de imaginar possibilidades; a
dimensão espiritual, no entanto, envolve os sentimentos e, em
particular, aqueles que nos ligam às outras pessoas e à natureza ao
nosso redor, nos tornando capazes de sentirmos satisfação ou
insatisfação não apenas por nós mesmos, mas também nos permitindo
desenvolver empatia por outras pessoas, nos motivando a agir também pelo
bem-estar de outros. Nessa concepção, o hedonismo é ético e pressupõe
que, se buscarmos maximizar o prazer nestas três dimensões, permanecendo
sensíveis às mesmas, estaremos em equilíbrio. O hedonismo é uma bússola
interna para procurar a verdade pois implica na atenção plena às fontes
primárias do conhecimento de si próprio e do mundo: o prazer e a dor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário