Este
post pretende ser uma introdução da relação da Bíblia à experiência
mística nas mais diversas tradições. Há muito que se possa encontrar na
Bíblia para dar apoio à busca da sabedoria e do entendimento. Trata-se
da história de um povo escrita por diversas pessoas, mostrando suas
crenças, emoções, conflitos, leis, decisões políticas, poesia, críticas,
enfim..., um depoimento. Seria preconceituoso afirmar que não há valor
na Bíblia apenas porque muitos a utilizam mal, arraigando-se a conceitos
que precisam ser questionados e comumente não o são. Ao citar a Bíblia
aqui, neste post e em outros que eu o fizer, eu não estou assumindo de
forma alguma uma postura dogmática (o que seria totalmente contrário à
minha proposta). O que pretendo fazer de fato é não ter discriminação em
relação à Bíblia, da mesma forma que não pretendo ter em relação às
outras fontes, quando for útil referenciá-las. Eu acredito que a forma
mais benígna de se utilizar a Bíblia, assim como qualquer outra fonte,
seja continuar fazendo perguntas sinceras, e jamais aceitar respostas
sem que as tenhamos verificado e chegado por nossos próprios meios às
conclusões do que aceitamos ou não.
Especialmente
no caso de Jesus, tratam-se de impressões que outras pessoas tiveram
dele, uma vez que ele jamais escreveu sobre si mesmo. O que é uma pena
porque as pessoas sempre percebem os fatos a partir dos filtros de seus
próprios entendimentos. Para fazer tudo mais difícil, muitos evangelhos
foram tornados apócrifos e destruídos. Ou seja, o filtro das impressões
sobre Jesus tornou-se ainda mais fechado.
A
ideia que vamos explorar, relacionada à experiência mística (e que
procuraremos associações bíblicas) diz respeito a dois tipos de mudança
possíveis em relação às pessoas. Uma se refere às atitudes externas, e a
outra é a mudança interior, ligada às crenças individuais. Normalmente é
mais fácil mudarmos nossas atitudes do que nossas crenças,
especialmente quando percebemos ser conveniente transformá-las em função
de situações concretas, tentando obter melhores resultados da realidade
ao nosso redor. Já as mudanças interiores, estas são mais difíceis
porque dependem de conseguirmos nos desligarmos dos incessantes eventos
externos que concorrem para tirar a atenção de nosso próprio ser.
Quanto
mais somos estimulados externamente, menor a chance de realizarmos a
pausa que é necessária para uma transformação interna. Faz sentido, para
aqueles que buscam uma transformação espiritual, optar pelo isolamento,
tal como muitos monges o fazem, assim como padres, freiras, e outros
praticantes das mais diversas religiões (embora o isolamento não seja o
único meio de fazê-lo). Por esse ponto de vista, o trecho bíblico abaixo
adquire um significado especial:
Então
Jesus disse aos seus discípulos: "Em verdade vos digo que um rico
dificilmente entrará no Reino dos Céus. E vos digo ainda: é mais fácil
um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no
Reino de Deus".
Mateus (19, 23) - Bíblia de Jerusalém
Há
um certo questionamento se trata-se de camelo ou corda (por uma questão
de tradução), mas isto não é tão relevante a princípio. Essencialmente
acredito que não haja algo errado em ser rico, a princípio. Não é essa a
questão. Mas a transformação espiritual que é necessária justamente
para começar o caminho é muito desfavorecida quando se é suscetível a
uma ampla gama de estímulos.
De
fato é, justamente com as pessoas que (intencionalmente ou não)
passaram por privações, que a experiência mística ocorre mais
frequentemente. Essa experiência é o contato com uma realidade que não é
fisicamente aparente (transcendendo as relações físicas), embora essa
realidade interaja e transforme os aspectos físicos sem que o
percebamos. No que diz respeito a esta experiência, é difícil alguém se
despojar ao ponto da mente entrar em repouso sem deixar-se perturbar,
mas ainda assim isso pode ser feito, com uma grande dificuldade, pela
parte das pessoas que se baseiam muito naquilo que possuem (ricas,
conforme o termo bíblico). A Bíblia mesmo se refere a essa condição como
uma dificuldade, não uma impossibilidade.
Mas
qual exatamente é a importância de atingir este estado de repouso? É
porque é aí (na percepção de si mesmo sem interferência do que é
externo) que é criada a base para uma nova identidade, uma iniciação.
Então segue um desenvolvimento interior e exterior que, com certeza, vai
envolver também relações com o mundo físico, porém essa base inicial,
esse renascer tem que ser realizado perfeitamente.
O trecho bíblico abaixo reforça ainda mais este aspecto da necessidade de ausência de estímulos (no caso, rejeição):
Disse-lhes
então Jesus: "Nunca lestes nas Escrituras: 'A pedra que os construtores
rejeitaram tornou-se a pedra angular; pelo Senhor foi feito isso e é
maravilha aos nossos olhos'? Por isso vos afirmo que o Reino de Deus vos
será tirado e confiado a um povo que produza seus frutos".
Mateus (21, 42-43) - Bíblia de Jerusalém
Ainda sobre a iniciação, há um trecho bíblico neste sentido:
Havia,
entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um notável entre os
judeus. À noite ele veio encontrar Jesus e lhe disse: "Rabi, sabemos que
vens da parte de Deus
como
um mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus não
estiver com ele". Jesus lhe respondeu: "Em verdade, em verdade, te digo:
quem não nascer do alto não pode ver o Reino de Deus".
Disse-lhe Nicodemos: "Como pode um homem nascer, sendo já velho? Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?"
Respondeu-lhe
Jesus: "Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do
Espírito não pode entrar no Reino de Deus. O que nasceu da carne é
carne, o que nasceu do Espírito é espírito. Não te admires de eu te
haver dito: deveis nascer do alto. O vento sopra onde quer e ouves o seu
ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com
todo aquele que nasceu do Espírito".
Perguntou-lhe Nicodemos: "Como isso pode acontecer?"
Respondeu-lhe
Jesus: "És o mestre de Israel e ignoras essas coisas? "Em verdade, em
verdade, te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho do que
vimos, porém não acolheis o nosso testemunho. Se não credes quando vos
falo das coisas da terra, como ireis crer quando vos falar das coisas do
céu?
João (3, 1-12) - Bíblia de Jerusalém
É
muito útil (como exercício para ajudar a renovar as próprias ideias)
rever os trechos bíblicos citados neste post, dentro de seus contextos
específicos, e procurar analisá-los, comparando-os com os conceitos que
foram apresentados.
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