sábado, 15 de dezembro de 2012

O Papel da Ciência

Nos últimos séculos o ramo do conhecimento que mais tem desafiado a magia, o esoterismo, e até mesmo a religião, é aquele que chamamos de ciência (ou melhor dizendo, as ciências exatas, entre elas sendo considerada a Física como o pivô desse desafio). Não que os cientistas sejam todos céticos. Não é esse o ponto. De fato é precisamente o oposto, para a ciência, não importa o que o cientista pensa, nem quais sejam suas posições pessoais, nem onde viveu, nem quando viveu (a ciência não é feita só de conhecimento novo). A ciência é um corpo de conhecimentos que se forma a partir de observações múltiplas, da coletividade dos cientistas, de onde surgem teorias que são postas à prova em experimentos, os quais nada mais são do que formas de se obter novas observações. É assim que funciona o método científico e é por isso que o que esse método descobre é tão eficaz: é um conhecimento verificado, que se torna a base da tecnologia e a tecnologia se mistura ao ser humano, modificando-o e modificando o mundo também, por extensão.

A ciência, por ser formada por um conhecimento verificado, e também por causa de todos os benefícios que ela tem trazido ao mundo do ponto de vista tecnológico, é, sem dúvida, imensamente sedutora. Quando se diz que algo é científico, o que quer que seja, passa a ser considerado como verdadeiro, ou pelo menos um candidato muito provável a ser verdade. Já quando se diz que algo não é científico, as pessoas tendem a acreditar que é falso. Mas isso não deveria ser assim, afinal, apenas porque algo ainda não foi verificado cientificamente, não quer dizer que seja falso. Ainda assim, torna-se cada vez mais difícil manter certas posições arraigadas quando a ciência insistentemente aponta para outra direção. Por exemplo, citemos o Gênesis bíblico, o qual muitas pessoas ainda acreditam ser uma descrição literal de como o mundo foi criado:

Deus disse: "Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas das águas", e assim se fez. Deus fez o firmamento, que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus chamou ao firmamento "céu". Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia. Deus disse: "Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e que apareça o continente" e assim se fez.
(Gênesis 1; 6-9 - Bíblia de Jerusalém)

A despeito de todo conteúdo ocultista que haja no texto, está também revelado aí como pensavam as pessoas, sobre a criação do mundo, na época em que foi escrito, em que a ciência como a conhecemos era ainda primitiva. O que se destaca neste trecho específico diz respeito à água. A ideia é que havia água em toda a parte (a Bíblia não deixa claro como a água surgiu) e que foi feito um firmamento (algo firme, pensemos numa redoma como metáfora) que separou a água acima (formando o céu), da água abaixo (os mares), e depois da água surgiram os continentes. Afinal o céu é azul, não é? E chove também a partir dele. Isso tudo só pode indicar que é cheio de água. Ou pelo menos era o que parecia para as pessoas na época. Ainda sobre o firmamento:

Deus disse: "Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite; que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos; que sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra" e assim se fez.
Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro para governar o dia e o pequeno luzeiro para governar a noite, e as estrelas. Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, para governarem o dia e a noite, para  separarem a luz e as trevas, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia.
(Gênesis 1; 14-19 - Bíblia de Jerusalém)

Os luzeiros, nessa explicação, foram colocados na redoma. O Sol e a Lua se movendo nela, e as estrelas afixadas. As pessoas sequer imaginavam que o universo estava (e está) em expansão, de forma que as estrelas não tem posições fixas. Na realidade, essa forma de pensar, de um universo eternamente estacionário, continuou até o começo do século XX, até que observações mostraram o contrário.

Eu gosto desta visão de Stephen Hawking, um físico notório da atualidade, em seu livro O Universo Numa Casca de Noz:

Uma teoria científica segura, seja do tempo ou de qualquer outro conceito, deve, na minha opinião, ser baseada na mais viável filosofia da ciência: a abordagem positivista formulada por Karl Popper e outros. Segundo essa maneira de pensar, uma teoria científica é um modelo matemático que descreve e codifica as observações que fazemos. Uma boa teoria descreverá uma vasta série de fenômenos com base em uns poucos postulados simples e fará previsões claras que podem ser testadas. Se as previsões concordam com as observações, a teoria sobrevive àquele teste, embora nunca se possa provar que esteja correta. Por outro lado, se as observações discordam das previsões, é preciso descartar ou modificar a teoria. (Pelo menos, é isso que deveria acontecer. Na prática, as pessoas muitas vezes questionam a exatidão das observações, a confiabilidade e o caráter moral de seus realizadores).

Esta citação resume a essência da ciência e também o seu valor. Essa essência, por mais que nos incomode, não deve ser mudada. É ela que nos garante o eterno questionamento que nos aponta a nossa própria cegueira. É claro que o conhecimento científico é apenas uma pequena parte da Verdade. Há muito que ainda precisa ser verificado para se tornar verdade científica. Muitos de nós gostaríamos que o que pensamos fosse tornado parte desse corpo de conhecimento sem mudanças, e essa é uma aposta ainda mais cega quando não questionamos as raízes do que sabemos, confiando, sem questionar, em dogmas que não criamos. Para nosso alívio, não podemos nos esquecer que a ausência de evidências não é a mesma coisa que a evidência da ausência, o que significa que não precisamos procurar justificar nossa forma de pensar e ser, com base exclusiva no que postula a ciência. Na realidade há duas falhas que devemos evitar: a primeira é ignorar a ciência; a segunda é endeusá-la. Precisamos aceitar que a ciência de um lado, e a magia, o esoterismo e o ocultismo de outro, têm naturezas diferentes, porém complementares e que irão interagir, transformando-se. O fato é que o conhecimento da verdade absoluta não está em lugar algum. Deixo aqui um comentário de Carl Sagan (09/11/1934-20/12/1996), astrônomo e astrofísico renomado por divulgar a ciência ao público leigo, a respeito de uma conversa que teve com Dalai Lama (o livro de que foi retirada a citação, apesar do título, não se trata de demonologia e sim da relação da ciência com demais campos de conhecimento):

Quando discuto teologia com líderes religiosos, pergunto freqüentemente qual seria a sua reação se um dogma central de seu credo fosse refutado pela ciência. Quando fiz essa pergunta ao atual dalai-lama, o 14.º, ele me deu sem hesitar uma resposta que nenhum líder religioso conservador ou fundamentalista daria: nesse caso, disse ele, o budismo tibetano teria de mudar.
- Ainda que fosse um dogma realmente central - perguntei - como a reencarnação?
- Ainda assim - ele respondeu. Entretanto - acrescentou com uma piscadela - vai ser difícil refutar a reencarnação.
Sem dúvida, o dalai-lama tem razão. A doutrina religiosa imune à refutação tem poucos motivos para se preocupar com o progresso da ciência.
A idéia grandiosa, comum a muitos credos, de um Criador do Universo é uma dessas doutrinas - é igualmente difícil prová-la ou refutá-la.
(“O Mundo Assombrado pelos Demônios”, de Carl Sagan)

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