Nos
últimos séculos o ramo do conhecimento que mais tem desafiado a magia, o
esoterismo, e até mesmo a religião, é aquele que chamamos de ciência
(ou melhor dizendo, as ciências exatas, entre elas sendo considerada a
Física como o pivô desse desafio). Não que os cientistas sejam todos
céticos. Não é esse o ponto. De fato é precisamente o oposto, para a
ciência, não importa o que o cientista pensa, nem quais sejam suas
posições pessoais, nem onde viveu, nem quando viveu (a ciência não é
feita só de conhecimento novo). A ciência é um corpo de conhecimentos
que se forma a partir de observações múltiplas, da coletividade dos
cientistas, de onde surgem teorias que são postas à prova em
experimentos, os quais nada mais são do que formas de se obter novas
observações. É assim que funciona o método científico e é por isso que o
que esse método descobre é tão eficaz: é um conhecimento verificado,
que se torna a base da tecnologia e a tecnologia se mistura ao ser
humano, modificando-o e modificando o mundo também, por extensão.
A
ciência, por ser formada por um conhecimento verificado, e também por
causa de todos os benefícios que ela tem trazido ao mundo do ponto de
vista tecnológico, é, sem dúvida, imensamente sedutora. Quando se diz
que algo é científico, o que quer que seja, passa a ser considerado como
verdadeiro, ou pelo menos um candidato muito provável a ser verdade. Já
quando se diz que algo não é científico, as pessoas tendem a acreditar
que é falso. Mas isso não deveria ser assim, afinal, apenas porque algo
ainda não foi verificado cientificamente, não quer dizer que seja falso.
Ainda assim, torna-se cada vez mais difícil manter certas posições
arraigadas quando a ciência insistentemente aponta para outra direção.
Por exemplo, citemos o Gênesis bíblico, o qual muitas pessoas ainda
acreditam ser uma descrição literal de como o mundo foi criado:
Deus
disse: "Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas
das águas", e assim se fez. Deus fez o firmamento, que separou as águas
que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento, e
Deus chamou ao firmamento "céu". Houve uma tarde e uma manhã: segundo
dia. Deus disse: "Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só
massa e que apareça o continente" e assim se fez.
(Gênesis 1; 6-9 - Bíblia de Jerusalém)
A
despeito de todo conteúdo ocultista que haja no texto, está também
revelado aí como pensavam as pessoas, sobre a criação do mundo, na época
em que foi escrito, em que a ciência como a conhecemos era ainda
primitiva. O que se destaca neste trecho específico diz respeito à água.
A ideia é que havia água em toda a parte (a Bíblia não deixa claro como
a água surgiu) e que foi feito um firmamento (algo firme, pensemos numa
redoma como metáfora) que separou a água acima (formando o céu), da
água abaixo (os mares), e depois da água surgiram os continentes. Afinal o céu é azul, não é? E chove também a partir dele. Isso tudo só pode indicar que é cheio de água. Ou pelo menos era o que parecia para as pessoas na época. Ainda sobre o firmamento:
Deus
disse: "Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a
noite; que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os
dias e os anos; que sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a
terra" e assim se fez.
Deus
fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro para governar o dia e o
pequeno luzeiro para governar a noite, e as estrelas. Deus os colocou no
firmamento do céu para iluminar a terra, para governarem o dia e a
noite, para separarem a luz e as trevas, e Deus viu que isso era bom.
Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia.
(Gênesis 1; 14-19 - Bíblia de Jerusalém)
Os
luzeiros, nessa explicação, foram colocados na redoma. O Sol e a Lua se
movendo nela, e as estrelas afixadas. As pessoas sequer imaginavam que o
universo estava (e está) em expansão, de forma que as estrelas não tem
posições fixas. Na realidade, essa forma de pensar, de um universo
eternamente estacionário, continuou até o começo do século XX, até que
observações mostraram o contrário.
Eu gosto desta visão de Stephen Hawking, um físico notório da atualidade, em seu livro O Universo Numa Casca de Noz:
Uma
teoria científica segura, seja do tempo ou de qualquer outro conceito,
deve, na minha opinião, ser baseada na mais viável filosofia da ciência:
a abordagem positivista formulada por Karl Popper e outros. Segundo
essa maneira de pensar, uma teoria científica é um modelo matemático que
descreve e codifica as observações que fazemos. Uma boa teoria
descreverá uma vasta série de fenômenos com base em uns poucos
postulados simples e fará previsões claras que podem ser testadas. Se as
previsões concordam com as observações, a teoria sobrevive àquele
teste, embora nunca se possa provar que esteja correta. Por outro lado,
se as observações discordam das previsões, é preciso descartar ou
modificar a teoria. (Pelo menos, é isso que deveria acontecer. Na
prática, as pessoas muitas vezes questionam a exatidão das observações, a
confiabilidade e o caráter moral de seus realizadores).
Esta
citação resume a essência da ciência e também o seu valor. Essa
essência, por mais que nos incomode, não deve ser mudada. É ela que nos
garante o eterno questionamento que nos aponta a nossa própria cegueira.
É claro que o conhecimento científico é apenas uma pequena parte da
Verdade. Há muito que ainda precisa ser verificado para se tornar
verdade científica. Muitos de nós gostaríamos que o que pensamos fosse
tornado parte desse corpo de conhecimento sem mudanças, e essa é uma
aposta ainda mais cega quando não questionamos as raízes do que sabemos,
confiando, sem questionar, em dogmas que não criamos. Para nosso
alívio, não podemos nos esquecer que a ausência de evidências não é a
mesma coisa que a evidência da ausência, o que significa que não
precisamos procurar justificar nossa forma de pensar e ser, com base
exclusiva no que postula a ciência. Na realidade há duas falhas que
devemos evitar: a primeira é ignorar a ciência; a segunda é endeusá-la.
Precisamos aceitar que a ciência de um lado, e a magia, o esoterismo e o
ocultismo de outro, têm naturezas diferentes, porém complementares e
que irão interagir, transformando-se. O fato é que o conhecimento da
verdade absoluta não está em lugar algum. Deixo aqui um comentário de Carl Sagan
(09/11/1934-20/12/1996), astrônomo e astrofísico renomado por divulgar a
ciência ao público leigo, a respeito de uma conversa que teve com Dalai
Lama (o livro de que foi retirada a citação, apesar do título, não se
trata de demonologia e sim da relação da ciência com demais campos de
conhecimento):
Quando
discuto teologia com líderes religiosos, pergunto freqüentemente qual
seria a sua reação se um dogma central de seu credo fosse refutado pela
ciência. Quando fiz essa pergunta ao atual dalai-lama, o 14.º, ele me
deu sem hesitar uma resposta que nenhum líder religioso conservador ou
fundamentalista daria: nesse caso, disse ele, o budismo tibetano teria
de mudar.
- Ainda que fosse um dogma realmente central - perguntei - como a reencarnação?
- Ainda assim - ele respondeu. Entretanto - acrescentou com uma piscadela - vai ser difícil refutar a reencarnação.
Sem
dúvida, o dalai-lama tem razão. A doutrina religiosa imune à refutação
tem poucos motivos para se preocupar com o progresso da ciência.
A
idéia grandiosa, comum a muitos credos, de um Criador do Universo é uma
dessas doutrinas - é igualmente difícil prová-la ou refutá-la.
(“O Mundo Assombrado pelos Demônios”, de Carl Sagan)
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