Hoje
eu gostaria de fazer uma reflexão sobre a imagem que nós temos da
divindade. Muitas pessoas, quando pensam no divino, trazem à mente
aquela visão do Deus criador de todas as coisas, que fez a criação
distinta de si, existindo, portanto, criador e criatura. É um Deus
considerado omni-presente, omni-potente e omni-ciente. Omni significa
“em todo lugar”. Então omni-presente o torna presente em todo lugar,
omni-potente o torna potente em todo lugar, e omni-ciente o torna ciente
de todo lugar. Assim definido, Deus é considerado a pura imagem da
perfeição. É o criador perfeito. Já a criação, foi feita perfeita, mas
se tornou imperfeita por causa do livre-arbítrio.
Porém,
se pensarmos bem, há certos pontos que não se encaixam na visão comum
sobre a divindade. Por exemplo, o criador perfeito faz a criatura, e a
criatura falha. Isso é uma contradição. Imagine, por exemplo, a lógica
do relojoeiro: o relojoeiro é o melhor relojoeiro e seus relógios não
falham nunca. Nunca precisam de conserto. É por isso que ele é perfeito.
Mas se os relógios do relojoeiro falhassem, isso indicaria que o
relojoeiro não é tão bom assim. Nesse caso, ou o relojoeiro é perfeito e
seus relógios são perfeitos, ou o relojoeiro não é perfeito e seus
relógios também não o são. Ainda assim, esta é uma dedução simplória.
Existe
o argumento de que a criação tem livre-arbítrio e que se desenvolve por
suas próprias decisões. Nesse caso, algumas pessoas serão sempre más e
irão para o inferno, algumas outras vão purgar até ficarem limpas, e
outras terão, como destino, o paraíso. Isso parece lógico, mas ainda não
é. Uma metáfora para explicar o porquê do livre-arbítrio (e do destino
individual para o inferno, purgatório ou paraíso) não ser algo lógico é a
descrição do próprio processo criativo. Quando você cria alguma coisa,
se você já sabe exatamente aquilo que você vai criar, você já o faz
perfeito na primeira vez. Estava inteiro na sua mente, e você o fez como
o imaginava, e esse seria o caso de um Deus capaz de saber o futuro e
todas as coisas, antevendo cada possibilidade antes mesmo de acontecer.
Nesse caso, ele faria tudo perfeito, em um único instante, sem a
necessidade de um processo evolutivo doloroso que destina algumas almas
para um inferno eterno, outras para uma área de provação e purificação, e
outra para os já puros.
Um
Deus potente em todos os lugares, já criaria tudo perfeito e nada lhe
escaparia da consciência, não deixando escapar nenhum detalhe, por ser
omni-ciente. Ele o faria de uma forma que não houvesse a memória de um
tempo árduo e difícil. Se o processo evolutivo não se justifica nesta
visão, ainda menos justificável é a ideia da existência do Mal. Afinal,
se antes havia apenas Deus, e se Deus era capaz de prever tudo, porque
teria sido criado o Mal? Uma possível resposta seria porque assim o ser
humano poderia optar entre o Bem e o Mal, em um processo evolutivo.
Um
processo evolutivo não faz sentido pelas razões expostas. Mesmo
procurando referências bíblicas (que costumam ser associadas mais
comumente, pelas pessoas em geral, à concepção de Deus) a resposta de
que o Mal existiria para que o ser humano soubesse distinguir entre o
bem e o mal não parece ter justificativa:
Iahweh
Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e o
guardar. E Iahweh Deus deu ao homem este mandamento: "Podes comer de
todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do
mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer.
Bíblia de Jerusalém (Gênesis, 2, 15-17).
Portanto,
na própria Bíblia, não se justifica o argumento de que o Mal existe com
a finalidade de que se possa discerni-lo (pois, de acordo com o texto,
houve uma proibição expressa de que o homem comesse do fruto do
conhecimento do bem e do mal). Então, porque teria sido criado o Mal?
Talvez
a resposta mais simples para que seja tão difícil elucidar estas
questões é porque nossos conceitos sobre a divindade estão incorretos.
Estes questionamentos que foram expostos revelam a fragilidade de ideias
que nos foram passadas, e às diversas gerações antes de nós. São
conceitos que parecem verdadeiros mas não são. Quando nós percebemos
essa fragilidade, isso nos lembra um pouco o filme Matrix:
Morfheus: -“Eu imagino que você esteja se sentindo meio Alice, na toca do coelho”.
…
Morfheus: - “Você acredita em destino, Neo?”
Neo: - Não.
Morfheus: - “Por que não?”
Neo: “Não gosto de pensar que não controlo minha vida.”
…
Morfheus: - “Você deseja saber o que ela é (Matrix)?”
Morfheus:
– “A Matrix está em todo lugar a nossa volta. Mesmo agora, nesta sala.
Você pode vê-la quando olhar pela janela… ou quando liga sua televisão.
Você a sente quando vai para o trabalho… quando vai a igreja…quando paga
seus impostos. É o mundo que foi colocado diante dos seus olhos…para
que você não visse a verdade.”
Neo: - “Que verdade?”
Morfheus:
- “Que você é um escravo. Como todo mundo, você nasceu num cativeiro…
nasceu numa prisão que não consegue sentir ou tocar. Uma prisão… para
sua mente.”
Morfheus:
- “Infelizmente, é impossível dizer o que é Matrix. Você tem de ver por
si mesmo. Esta é sua ultima chance. Depois não há como voltar. Se tomar
a pílula azul…a historia acaba, e você acordará na sua cama acreditando
no que quiser acreditar. Se tomar a pílula vermelha ficará no País das
Maravilhas e eu te mostrarei até onde vai a toca do coelho. Lembre-se,
tudo que ofereço é a verdade. Nada mais.”
Extraído do blog ThunderCash, no post “Pílula: Azul X Vermelha”
Infelizmente,
eu não sou capaz de afirmar, como Morpheus, que tudo que ofereço é
verdade. Eu posso dizer que estou buscando a verdade. A realidade
frequentemente não tem opções tão nítidas quanto a ficção.
Ressalto
que o objetivo deste post não é criticar toda e qualquer concepção da
divindade. O que expus aqui é, sim, uma crítica à imagem que se tem da
divindade sem que a questionemos, sem que pensemos em suas
incongruências. Isso não quer dizer que não existam outras imagens do
divino, nem tampouco que uma visão evolutiva esteja errada. Cabe aqui
uma reflexão sobre a natureza da divindade, principalmente se estas
críticas lhe são doloridas. Eu vou explorar algumas ideias neste sentido
em outros posts.
Muito bom, mesmo.
ResponderExcluirTemos pontos de vista parecidos, quanto à divindade, e em como usar as metáforas da Matrix para explicar a 'realidade'.
Prazer em conhecê-lo, espero apreender mais algumas incertezas por aqui.
Até mais.
Olá Vinícius!
ExcluirÉ um prazer conhecê-lo também. Que bom que gostou do post. Na realidade meu objetivo é fazer com que as pessoas usem seus próprios neurônios.
Exatamente como você disse, eu quero criar algumas incertezas para ajudar a derrubar algumas "certezas" com raízes frágeis. Muito mais do que dar respostas prontas, eu desejo que as pessoas criem as próprias perguntas e que tentem achar as respostas.
Obrigado pelo seu comentário :)