sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Edgar, o Dentista

O ano de 2014 está chegando e resolvi preparar um presente para vocês. É a crônica “Edgar, o Dentista” do meu blog Incongruências Urbanas.
Desejo a todos vocês um feliz ano novo, com saúde, felicidade e prosperidade!

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Eu era ainda criança quando vi Edgar pela primeira vez. Foi no dia que meu pai me levou ao seu consultório. Recordo-me da primeira impressão que tive: um homem alto, de sobrancelhas grossas, cabelos negros e curtos, pele clara e os olhos característicos dos japoneses e de outros asiáticos. Estava sorridente (quase sempre Edgar é sorridente). Porém eu era pequeno e assustei-me. Não sei porquê algumas pessoas transmitem tranquilidade às crianças e outras não o fazem, não importa quão simpáticas sejam.
Seus pais deram-lhe um nome japonês: Yoshiro. No entanto, nunca sentiu-se confortável com o nome com que fora registrado. Por isso escolheu para si mesmo chamar-se de Edgar, e é assim que gosta de ser conhecido.

No consultório, um fato que chamou-me a atenção já de início foram seus diplomas e certificados. Eram muitos, todos distribuídos pela parede e protegidos por uma superfície de vidro. Aquela seria a primeira de muitas vezes em que eu iria tratar-me com ele. Enquanto aguardava a vez, entre uma revista e outra, eu os admirava. Acredito que nunca deixei de olhá-los, mesmo que de relance, sempre que voltei ali. Cursos, especializações das mais diversas, em muitos lugares e muitas épocas. Eu sempre perguntei a mim mesmo como podia ser possível alguém dominar tantas técnicas e especialidades. É algo que até contradiz o próprio conceito de especialidade. Afinal, se você tem diversas delas, você pode ser considerado um especialista?

Se eu não conhecesse Edgar, eu poderia dizer que todos aqueles documentos eram apenas conversa fiada, e que não era possível alguém conhecer tanto sobre seu ofício. Mas eu o conheço. Edgar é, de fato, um odontologista capaz de fazer qualquer coisa. Do mais banal ao mais complexo. Seja uma simples limpeza, seja um canal, uma obturação, uma extração, uma prótese, etc. Nada lhe causa insegurança.

Na realidade, há uma ressalva: extrações deixam-no impaciente. Certa vez eu perguntei a ele se seria indicada uma extração em um dos meus dentes do siso. Respondeu-me de uma forma, no mínimo, inusitada:
- Rogério, eu posso até extrair esse seu dente, mas vou cobrar mais do que o faria para um canal...

Espantei-me. Era uma forma de cobrar que me parecia bizarramente invertida. Repliquei:
- Nossa! Porque isso? A mim parece não fazer sentido algum.
Ele prosseguiu:
- Na semana passada eu tratei uma doutora, professora universitária. Você não imagina quanto trabalho eu tive para extrair um dente dela. Por isso eu digo: vamos cuidar desse dente ao invés de extraí-lo. Isso vai lhe sair muito mais barato.
E assim o fizemos.

Certa vez eu precisei tratar um canal.  Edgar propôs uma alternativa:
- Bom, este é um caso de canal. Eu posso tratá-lo da forma que se faz usualmente, porém existe uma outra opção.
- Outra opção?
- Sim. É algo que não se faz mais, mas que eu acredito que vai dar certo. Eu posso, como diria... mumificar esse canal. Ele simplesmente vai secar e perder a função.

Edgar e suas experiências. Concordei em deixá-lo realizar o procedimento. Muitos anos se passaram então e eu havia viajado. Mastiguei algo que acabou por quebrar aquele dente. Como iria passar muitos dias ali, resolvi ir a uma clínica odontológica. Após analisar uma radiografia de meu dente, um dos profissionais resolveu pedir ajuda ao vizinho, do outro consultório:
- Não sei como interpretar esta radiografia. Veja só (mostrando a radiografia). Não foi feito o canal, mas aparentemente não há o nervo.
O colega chamou um outro que, enfim, reconheceu a técnica que havia sido utilizada. Voltou-se para mim:
- Esta técnica é bem pouco usual. Não está errada, mas não se costuma realizá-la. Não foi feito o tratamento do canal mas o nervo foi morto. Você estava ciente disso?
- Sim. Eu estava - confirmei.
Esta, na realidade, não foi a única vez em que precisei explicar o tratamento deste meu dente.

Pelo que soube, não demorou muito para que Edgar se tornasse o dentista mais requisitado da Vila Suíça. Digo dentista ao invés de odontologista porque é assim que o povo se habituou a chamá-lo, e eu me incluo no povo. Sua fama cresceu, fosse por todas suas especialidades, fosse pelos tratamentos com valor realmente em conta que sempre praticou, e fosse principalmente pelo prazer com que lida com sua clientela, sempre contando histórias. Certa vez contou-me uma delas:
- Vou contar-lhe algo sobre o Japão.
- Fique à vontade - balbuciei com um lado da boca todo anestesiado.
- Aqui no Brasil é muito perigoso para as crianças atravessarem as ruas sozinhas. Concorda?

Seria certamente mais fácil para mim se eu apenas precisasse ouvi-lo, porém ele frequentemente solicitava que eu interagisse. Eu nada disse e ele repetiu:
- Concorda?

Não havia o que fazer. Eu precisava dar-lhe um retorno:
- Sim. Concordo.
Ele continuou:
- Pois então, no Japão há bandeirinhas para atravessar as ruas. A última criança a atravessar leva a bandeirinha consigo para sinalizar aos condutores dos veículos de que não há mais crianças a passar. Você sabia disso?
- Não. Não sabia - respondi admirado.
- Um país com educação no trânsito tem de dar segurança aos pedestres, e principalmente às crianças - concluiu.

Noutro dia, quando fui ao trabalho, conversei com Sandra, uma colega também de origem japonesa, e contei-lhe o que Edgar tinha dito a mim. No seu ponto de vista, aquela era uma história hilariante. Uma invenção da mente de meu dentista. A imagem pessoal que eu tinha de Edgar feriu-se com aquele comentário.

Dei atenção a algumas pessoas que o julgavam de forma depreciativa apenas por sua simplicidade aparente. Pessoas que consideravam "o livro pela capa", como se costuma dizer. Procurei outros profissionais e descobri que se dividiam em especialidades, cada um enxergando apenas parte do que deveria ser feito. Tratei e retratei meus dentes com estes. Quando comparados a Edgar sempre aparentaram saber menos e os resultados dos tratamentos eram menos permanentes do que quando Edgar os conduzia.

Hoje uma obturação caiu e pensei em Edgar, após muitos anos sem vê-lo. Lembrei-me da história da bandeirinha e procurei alguns termos no Google: bandeirinha, atravessar, rua, Japão. Escrevi tudo junto, sem vírgulas e sem aspas. Encontrei já de cara: "Japão é assim: BANDEIRINHA PARA ATRAVESSAR A RUA". Fiquei surpreso com o achado. Edgar estava certo desde o início. Procuro seu telefone na lista e o encontro. Teclo os dígitos, identifico-me e ouço sua voz em resposta:
- Oi Rogério! Há quanto tempo! Eu nunca mais o vi por aqui.
- Edgar, eu gostaria de tratar um dente. Eu posso ir aí hoje?
- Mas é claro. Pode vir sim. A tarde está bem folgada.

Chego então à Vila Suíça e subo as mesmas escadas, ansioso para revê-lo e para desejar-lhe um Feliz Ano Novo, com votos sinceros de longos anos de vida e muita saúde. É sempre bom quando se reencontra um velho amigo.

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